Estava-se no último dia de janeiro de 1971, um domingo que era também o último santificado Dia do Senhor do primeiro mês do ano primeiro dessa década. Em tempo de antigo regime em que quase tudo girava em torno da capital do país, com televisão e tudo mais a enquadrar o panorama português. Disputando-se na tarde desse domingo um interessante jogo que trazia ao Porto a equipa do Benfica, mais uma vez em tal superioridade que se deslocava em despreocupada entrada em campo. Só que, dessa vez, algo aconteceu…
Então, Benfica de Eusébio e companhia saiu vergado das Antas por 4-0 graças a um póquer de Lemos. O pequeno grande avançado portista - que já havia bisado no clássico da primeira volta - arrasou por completo a defesa encarnada e assinou uma página inesquecível na história do FC Porto. No final, o “Müller português” levou para casa quarenta contos (dez por cada golo), mais cem contos em tintas da "Dukaline", firma que ao tempo era anunciada em todos os jogos nos altifalantes do estádio) e ainda foi presenteado com eletrodomésticos por uma loja da Invicta, recebendo mais precisamente um frigorífico, uma máquina de lavar louça e um gira-discos (coisas que ao serem anunciadas pelos altifalantes do estádio, antes do início do jogo, para quem marcasse 3 ou mais golos do Porto, até provocaram sorrisos e risadas entre o público, mas no fim fizeram parte da grande euforia vivida). Cujos prémios depois foram distribuídos entre companheiros da equipa.
Pois foi, nesse que foi o jogo da vida de Lemos e de muita gente mais, houve essa surpreendente marca no resultado, pelos números que não no resto. Sabendo-se que o Benfica apenas passeava superioridade por evidente proteção do regime, como era conhecido o facto de bastar os defesas vermelhos levantarem o braço em investidas dos adversários para os árbitros marcarem foras de jogo, assim como eram inventados penaltis quando a equipa do sistema encarnado precisava (não mais esquecendo o penalti inventado por Reinaldo Silva que tirou ao FC Porto o título nacional de 1962 /63, assim entregue ao Benfica).
Lemos, que havia marcado nessa época de 1970/71 no estádio da Luz já na 1ª volta do campeonato os 2 golos portistas do empate a dois golos, alargou a conta com mais quatro nessa tarde de glória no estádio das Antas. Em dia que era de festa também por ser de homenagem ao Presidente Afonso Pinto de Magalhães, que estava praticamente a despedir-se da gerência do clube.
Sintomático da envolvência com que o acontecimento se revestiu, na edição do jornal O Porto, órgão oficial do clube ao tempo, foi narrada a euforia do cometimento esquecendo a ficha do jogo, por ocupação de espaço para o feito de Lemos e significativa homenagem ao “Timoneiro do clube”.
Com esse enfoque ganho o então jovem Lemos mereceu alguma atenção da imprensa lisboeta, tendo tido destaque de capa e espaço interior na revista “O Século Ilustrado”, embora com um título interior e referências a remeter para sua antiga simpatia pelo Benfica, quando estava ainda na sua terra natal, em Angola.
Após isso, Lemos foi chamado à Seleção Nacional de Esperanças, quando se esperava que fosse incluído na Seleção A… E que falta fez em jogo que Portugal perdeu em Bruxelas por 3-0 diante da Bélgica, de apuramento para o Europeu, enquanto conseguiu ser bem útil na vitória da equipa portuguesa das Esperanças sobre a Espanha… por exemplo.
Depois é sabido o que aconteceu, mais para diante, com um castigo que lhe foi aplicado de 4 jogos sem jogar, mediante expulsão ocorrida no jogo em casa da CUF do Barreiro, quando ia à frente dos goleadores do campeonato, quase no final do mesmo. E volvidos tempos foi mobilizado para a guerra colonial, indo destacado para a Guiné.
Pese tudo isso, esse 31 de janeiro ficou para a história. Tal como no Porto se dera o 31 de Janeiro da Revolta de 1891, numa tentativa de alterar a situação política vigente nesses lustros, em 1971 Lemos, Custódio Pinto, Pavão, Rolando, Abel, Nóbrega, Valdemar, Manhiça, Rui, Leopoldo, Gualter, Bené e Ricardo derrotaram o sistema reinol, dentro do que ainda era possível por essa época.
De Lemos, o herói dessa grande alegria que tivemos, guarda o autor destas lembranças uma foto autografada pessoalmente nesse tempo (e uma outra recebida de oferta mais tarde por meio de um amigo). E sobretudo está bem gravado no íntimo cá de dentro o que foi sentido ao ouvir o relato desse jogo, de ouvidos atentos cá longe e imaginação sentimentalmente perto.
Armando Pinto
((( CLICAR sobre as imagens )))
Sem comentários:
Enviar um comentário